Textos
Em Órbita
Didiana Prata, 2024
Texto escrito para a exposição Em Órbita, no Centro MariAntonia.
Os acontecimentos da rua merecem um olhar mais atento, em outra velocidade. Nesse entretempo, Renata Ursaia capta com sagacidade os corpos que habitam ônibus, motocicletas, mesas de bilhar, botecos, calçadas e quintais, conferindo alma e sentido à urbanidade.
Com um conjunto de pinturas figurativas interconectadas e em diálogo com sua produção filmica, Em Órbita apresenta uma tessitura sensível sobre o cotidiano de São Paulo e seus cidadãos anônimos.
As pinturas pausam ações em movimento como fotogramas. É nesse deslocamento para a materialidade da tinta a óleo – estratégia bem explorada pela artista – que a oscilação entre o documental e o ficcional abre espaço para o lúdico e o imaginário. Suas composições tocam o espectador por meio de uma série de elementos simbólicos, nem sempre tangíveis, como a sensação de intimidade com que retrata seus personagens. Nesse jogo de linguagem, a paleta de cores desempenha um papel fundamental, adicionando camadas de tinta que revelam nuances, volumes e expressividade aos corpos e seus rastros no espaço cênico.
Na rua, dentro da cena ou pelas frestas, Em Órbita transcende o ordinário do caos urbano, provocando-nos a decifrar, nesse trajeto, os enigmas e a poética que constituem a memória etnográfica de um tempo presente da cidade.
O prazer da dúvida
Jorge Menna Barreto, 2010
Texto escrito originalmente para o Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo.
A dúvida é aquele estado mental que nos faz pendular entre a segurança de algo que temos como dado e a desconfiança de que o chão sobre o qual este algo repousa talvez não seja tão estável assim. É exatamente nas bases do pensamento que a dúvida atua, corroendo as certezas e multiplicando as possibilidades interpretativas de uma situação, objeto ou imagem. Por isso é tão potente e pode abalar estruturas tidas como sólidas. Na vida cotidiana e nas relações pessoais, pode ser muito cruel. Mas na arte e na filosofia, a dúvida é o que possibilita os mais prazerosos exercícios do pensar. O estado duvidoso é o que nos arranca daquele mundo anestesiado e faz brotar possibilidades de pensá-lo a partir de posições que não imaginávamos existir, questionando o nosso bom e velho ponto de vista unidirecional.
— Olha o camelo, filha!
No vídeo “Dromedário”, Renata Ursaia captura a imagem de um dromedário no zoológico. No início do filme, vemos a cabeça do animal estática dormindo e ouvimos uma voz em off de uma mãe que aponta o bicho para a filha, dizendo: “Olha o camelo, filha!”. O título do trabalho revela a imprecisão do comentário, que no entanto não é passível de ser verificada pelo público, pois tudo o que vemos é a cabeça do animal. Após esta voz, o áudio silencia e inicia-se um lento movimento de acordar do bicho, que gira a sua cabeça, abrindo os olhos e encarando a câmera com um olhar morno, indiferente, contendo até mesmo um certo desprezo.
O que temos neste primeiro trabalho é uma relação ambígua entre a imagem que se apresenta, a voz de alguém que não aparece – dirigida para um outro alguém, também oculto – e o título do trabalho. Essa triangulação por si só já garantiria uma reflexão intelectual interessante sobre a relação entre texto, imagem e veracidade, por exemplo. No entanto, a nossa tentativa de organização do sentido, a partir desta narrativa, é fulminada pelo olhar do animal que, encarando a câmera ao final, derrete toda a distância e gera um campo de identificação de alto impacto com o visitante, olho no olho. A partir deste vínculo e torsão no eixo da narrativa, não somos mais nós que olhamos o bicho. É ele que nos arrebata com a sua verdade e põe a ruir as paredes do labirinto mental humano que tanto se esforça – em vão – para decifrar o indecifrável.
Este mesmo lugar da dúvida e da incerteza é alimentado nas próximas obras apresentadas por Renata nesta exposição. Em “Brenda e Tampinha”, a artista planeja um encontro entre um mini-pônei e um poodle gigante, cujos tamanhos são muito similares. O encontro se dá em um ambiente natural, no campo. Curioso é que estes dois animais são produtos da cultura, ou seja, não são encontrados espontaneamente na natureza. Foi a manipulação das espécies que possibilitou criar estas formas inusitadas; assim como a intervenção no destino que possibilitou este encontro. Mas o que surpreende na operação da artista não é exatamente o estranhamento que um cachorro gigante e um cavalo anão podem causar, mas a naturalidade com que se afeiçoam, mesmo pertencendo a espécies tão distintas. O beijo entre eles, flagrado pela câmera, confunde a ideia do que seria natural ou artificial, acusando que estas noções são construções culturais e que as categorias que vemos são o resultado de um olhar doutrinado que mais cedo ou mais tarde acaba revelando suas limitações para dar conta do mundo das coisas.
Finalmente, “Repouso” apresenta a foto de um caminhão acidentado, de rodas para o ar. O título da obra dá uma outra qualidade para a imagem, subtraindo o que poderia haver de dramático e adicionando uma intencionalidade, como se o caminhão estivesse ali por vontade própria. A ambiguidade da relação entre a imagem e o texto novamente cria um espaço de dúvida, alargando as possibilidades de interpretação e produção de novos sentidos.
Historicamente, a foto e o vídeo têm sido usados como formas de captura do real. Apropriados pela jornalismo, documentam o mundo em que vivemos e chegam diariamente as nossas casas, dando notícias sobre o estado supostamente verdadeiro das coisas. Para instaurar a dúvida, Renata Ursaia se utiliza justamente destes dois meios de alta credibilidade no imaginário coletivo. Joga uma areia fina, mas perturbadora, nas engrenagens muito bem azeitadas da cultura que tentam naturalizar a ideia de que a foto e o vídeo seriam dispositivos confiáveis de documentação do real.
Se o dromedário for um camelo, se o discurso da mãe está certo, se Brenda e Tampinha de fato tiveram um beijo natural, se o caminhão está ali porque quer, são informações e conteúdos que não resolvem os enigmas propostos nesta exposição. Ao partir, as respostas parecem menos importantes do que a operação de instauração da dúvida proposta pela artista. Se estamos em busca do conteúdo, é a areia fina que desconcerta as engranagens do olhar naturalizado que a artista disponibiliza.
Saio da exposição com um saquinho dela no bolso.
É tudo verdade?
Bruno Mendonça, 2011
Analisando a obra da artista Renata Ursaia é possível que a resposta ou a formulação de uma nova pergunta traga consigo a palavra “quase”. Para Renata Ursaia não existe verdade ou mentira e sim “quase” verdades e “quase” mentiras, um eterno jogo de simulacros, truques, gambiarras e subversões.
A artista apresenta uma apurada linguagem visual ancorada no campo da fotografia e do vídeo basicamente, meios os quais ela utiliza para materializar seu poderoso senso de humor, urbano, contemporâneo e ácido. Renata Ursaia joga e blefa, como no truco, truques que faz sem que percebamos muitas vezes. A artista sorri de canto de boca, ao longe, assistindo de platéia seu show de mágica.
Em um vídeo um gato e o cachorro que mais parecem perucas respiram, porém só verá os animais e seu movimento o espectador mais atento. Vacas de mentiram pastam à beira de um lago, uma paisagem campestre, porém há algo de estranho, além das próprias vacas um erro de timing entre tempo e espaço parece constante. Um mini pônei e um poodle gigante se tornam quase amantes, reféns de uma cena que beira a montagem, mas trás apenas o registro de uma casualidade, um estranho amor. Um camelo praticamente se torna escultura ao movimentar-se lentamente em um pequeno vídeo. Para Renata Ursaia tudo é “quase” verdade. Natureza morta? Selva de pedra.
A artista totalmente consciente de seu contexto e seu entorno, de uma forma crítica absorve, interpreta e traduz questões latentes à sua realidade enquanto artista. Não podemos acreditar que para Renata Ursaia tudo seja uma grande brincadeira, equivocada interpretação de quem percebe de forma superficial sua posição política. Para ela a arte é apenas um instrumento de posicionamento.
Renata Ursaia é uma punk, no mais puro sentido da palavra, sutil, a artista na sua obra coloca em cheque paradigmas, conceitos e statements. Como dizia o artista Wesley Duke Lee: “ A verdade não pode ser dita, apenas revelada”, essa colocação pode expressar bem a obra de Renata Ursaia.